Vida em luta: o envelhecer de mulheres trans, específicas demandas na área da saúde

Frágil, o impulso que Anyky de Lima, 64, toma não é suficiente para que se ponha de pé quando, de pronto e antes de qualquer pedido de ajuda, Lorena Maria, 55, vai ao seu socorro. De braços dados, as amigas caminham juntas, passo por passo, e percorrem os poucos metros que separam a sala e o quarto da anfitriã. Ato final de um esforço da militante pelos direitos das travestis e transexuais em receber O TEMPO em sua casa, mesmo enfrentando uma forte gripe, a cena funciona como alegoria das trajetórias de vida e de luta delas. “A gente é uma pela outra, a gente se vira”, resumia Lorena instantes antes, ao refletir sobre uma rotina e uma militância marcadas pela solidão – acentuada na velhice.

Presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual em Minas Gerais (Cellos-MG) e representante estadual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Anyky foi expulsa de casa, no Rio de Janeiro, aos 12 anos. “Sempre me entendi como mulher – e minha família não aceitava. Só faltava tomar hormônios, o que fiz depois, por minha conta”, recorda. Ela ainda passaria por Vitória (ES), antes de fazer da capital mineira, onde vive há 33 anos, seu lar. Hoje, considera-se cidadã belo-horizontina “tombada pelo patrimônio”.

Lorena Maria, cocoordenadora do projeto Transpasse, que oferece acompanhamento psicossocial e orientação jurídica a travestis e transexuais em BH, deixou sua cidade natal, João Pinheiro, no Noroeste de Minas, aos 12 anos. “Logo comecei a tomar hormônios e, aos 14, já estava toda feminina”, lembra, completando que sente-se como uma exceção: “Não fui expulsa de casa, sempre me dei bem com a família. Saí porque morava em uma cidade pequena, fui expulsa da escola e, por falta de oportunidade, vim para BH”, conta. “Ao sair de casa, já nos tornamos adultas: tivemos que nos virar com moradia, com ter o que comer”, completa.

Sem direito a vivenciar infância e adolescência de maneira apropriada, a velhice é entendida de forma antecipada para elas. “Nem imaginava que ia chegar aos 55. Minha história de vida foi muito sofrida. Quando cheguei aos 40, me senti guerreira, aliviada e maravilhosa”, diz Lorena. “Eu também realmente não sei como cheguei até aqui”, emenda Anyky, que, logo, endereça um conselho às travestis e transexuais mais jovens: “Elas mesmas têm que procurar melhorar suas vidas. Quando são novas, é mais fácil de se virar. Mas, depois que fica velha… É babado”, assegura.

Expectativa de vida

Tanta surpresa em ultrapassar a faixa etária dos 50 e dos 60 anos tem sua razão: de acordo com levantamentos da Antra, a expectativa de vida dessas mulheres no país é, em média, de apenas 35 anos – para a população brasileira em geral, a estimativa é de 76,3. As biografias delas, aliás, ratificam uma ponderação de Flávia Teixeira, coordenadora do Centro de Referência e Atenção Integral para a Saúde Transespecífica (Craist), no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). “As idades referentes à adolescência, à vida adulta e à velhice não correspondem à trajetória das mulheres trans e travestis. Para elas, 40 anos já é muito marcante. Qualquer coisa acima disso, muitas vezes, já é lido como velhice”, analisa.

Questões relativas ao envelhecimento são vivenciadas por elas mais cedo. “Jovens, elas convivem com a morte de companheiras – e lamentam essas perdas, pois são pessoas que se tornam suas famílias. O tempo é marcado pela lembrança do que já foi”, observa Flávia. Durante a conversa com a reportagem, por sinal, foi recorrente a lembrança de amigas assassinadas. “Tem menina morrendo com 15, com 18 anos”, diz Anyky.

Terapias e cirurgias clandestinas trazem complicações

Terapias hormonais caseiras foram, por muito tempo, praticamente a única alternativa para que travestis e transexuais alcançassem a adequação de seus corpos ao gênero com o qual se identificavam. “Mesmo se a gente pagasse endocrinologista, eles não aceitavam. Eles diziam que a gente tinha problemas de cabeça”, reforça Lorena Maria.

Outra solução perigosa, comumente adotada por elas, são as aplicações de silicone industrial. “Coloquei com 16 pra 17 anos e nunca tive problema, até 2014, quando quase perdi a perna direita, que estava apodrecendo”, completa a ativista.

Esses procedimentos, na velhice, “apresentam consequências graves ao corpo, que se sobrepõem às consequências próprias do processo de envelhecimento”, observa Sérgio Ferreira Júnior, idealizador de uma extensão do projeto para o atendimento clínico odontológico, em que estudantes de odontologia e funcionários da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) passaram por capacitação sobre gênero e diversidade sexual.

No caso das terapias hormonais alternativas, há a “potencialização das doenças periodontais e de perdas ósseas”. Já o uso de silicone líquido pode “gerar diversas anomalias, seja na hora da aplicação ou com o passar dos anos, como deformações, dores, dificuldades para caminhar, infecção generalizada, embolia pulmonar e, até mesmo, a morte”, cita o doutor em ciências da saúde pela Universidade de São Paulo (USP), que, por conta desses fatores, lembra que idosas trans possuem demandas específicas de saúde.

“Há ainda as questões associadas ao HIV/Aids e a outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), uma vez que a população trans possui maior vulnerabilidade ante estes agravos de saúde, quando comparadas à população geral”, cita Ferreira Júnior.

Invisibilidade das trans idosas

O Brasil está passando por uma inversão da pirâmide etária: o número de idosos deve ultrapassar o número de crianças, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Nesse contexto, devemos pensar na diversidade sexual e de gênero na velhice”, argumenta Rogério Pedro, presidente e idealizador da ONG Eternamente Sou, que tem objetivo de gerar acolhimento e visibilidade para pessoas idosas LGBTs. Para ele, “são poucos os equipamentos dedicados a atender a terceira idade que estão preparados para acolher travestis e transexuais”.

Em 27 de março, a entidade inaugura, na capital paulista, um “Centro de Referência e Convivência LGBT 50+”. “Neste espaço, vamos oferecer oficinas e atividades e atendimento psicológico, orientação nutricional e jurídica, oficinas de arte e cultura”, enumera.

Rogério lembra que envelhecer, de forma geral, é um grande desafio, principalmente diante da escassez de políticas públicas dedicadas a esse público. “Em São Paulo, há 2,6 milhões de idosos e apenas 97 equipamentos públicos para atender toda essa população”, critica.

Se o número é “insignificante para esse grande contingente”, a situação se torna mais dramática para as travestis e transexuais. “Elas não se sentem pertencentes a esses espaços porque, na maioria das vezes, esses profissionais não estão orientados sobre a diversidade sexual e de gênero na velhice – nesses espaços, é comum que idosos sejam vistos de forma infantilizada e assexuada”, aponta. Por conta disso, diz o ativista, muitas são levadas a desfazer a transição e adotar uma identidade masculina, com a qual não se reconhecem.

Identidade negada

“Muitas mulheres chegam a certa idade e são obrigadas (a viver como homem). Se para um idoso normal já é difícil, já são abandonados. Imagina uma trans idosa… Quem iria cuidar de uma trans idosa?”, questiona Lorena Maria, 55, ativista na luta pelos direitos das travestis e transexuais. “Vivemos a vida inteira assim. Daí, chega quase no final da vida e temos que desfazer tudo aquilo que a gente foi e que lutou para ser, só para ter um teto e um prato de comida… Você acha isso justo? Depois de tudo o que a gente enfrentou, de toda a resistência que tivemos? Não é legal”, indigna-se, ao lembrar de companheiras que foram levadas a se “desmontar” – e que, por conta disso, “acabam em depressão”.

“A gente sente que não é bem querida assim. A gente vale o que tem, sabe? Se tem um milhão, vale um milhão, se tem um tostão, vale um tostão. Entendeu? Então se a trans não procurar construir algo, depois fica muito difícil. E não adianta ficar culpando governo, Estado, que não vão fazer nada mesmo”, resigna-se Anyky de Lima, 64, representante mineira da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A postura da militante, todavia, depõe contra uma postura conformista. Ainda que fragilizada, já faz planos. “Quando melhorar, vou chamar as meninas e ir para as ruas. Vou chamar vocês também, chamar a imprensa e fazer barulho, porque a violência contra nós está aumentando”, garante, citando casos de agressão a travestis e trans durante o Carnaval em Belo Horizonte e em São Paulo.

A aposentada Sônia Sissy Kelly, 63, que vive hoje na ocupação Carolina Maria de Jesus, na região central de BH, sustenta que “o pior do envelhecimento para a população travesti e transexual é a invisibilidade”. “Não somos vistas, inclusive em relação aos LGBTs. A gente conhece a juventude, mas a juventude não nos conhece”, lamenta. “Estamos vivendo cada vez mais no Brasil, o país está envelhecendo. Há mais pessoas trans chegando à terceira idade, mas não há política pública para nós. Não há nenhum tipo de trabalho para acolher essa população”, finaliza.

Para ativista, pessoas trans são vistas como criminosas

“Ninguém está interessado em ajudar pessoas trans. Até porque a gente é vista como criminosa”, crava Anyky de Lima, sobre um estigma que se comprova em documentos oficiais.

Elaborado a partir dos REDs (boletins de ocorrência) envolvendo LGBTs entre 2016 e 2018, um relatório de pesquisadores da UFMG indica ser mais provável que pessoas trans e travestis sejam corretamente designadas quando supostas autoras de crimes, mas, quando vítimas, sua identidade é apagada em quase metade dos casos. No levantamento, a identidade de gênero foi preenchida em 83,3% dos registros em que são apontadas como criminosas. Essa informação foi suprimida em 46,9% das vezes quando se trata de supostas vítimas.

A constatação das divergências no REDs, aliás, provocou o promotor de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Mário Konichi Higuchi, a encaminhar uma recomendação às polícias em defesa do correto preenchimento de dados – desde 2016, os registros devem constar informações como nome social, orientação sexual e identidade de gênero.

Relutância em ir a hospitais

Ao longo da vida, alguns grupos sociais “ficam mais expostos a situações de vulnerabilidade como a violência e preconceitos”, avalia o gerontólogo Diego Miguel. “Esses aspectos estão em nosso processo de envelhecimento e resultam em uma velhice específica, marcada pelas oportunidades e pelo acesso que tivemos. Por isso, há, sim, demandas específicas da comunidade trans”, argumenta.

O acesso a serviços de saúde, aliás, é um agravante quando se fala da saúde das pessoas trans. Para Sérgio Ferreira Júnior são insuficientes as discussão sobre gênero e sexualidade nas faculdades da área da saúde.

“Estas instituições, alicerçadas no binarismo de gênero, reforçam a heteronormatividade e não oferecem ferramentas na formação dos futuros profissionais que possam levá-los à reflexão e à desconstrução da homofobia e da transfobia”, diz o doutor em ciências da saúde pela USP.

Desta forma, os serviços de saúde acabam sendo abrigados em ambientes pouco receptivos para pessoas trans e “criando barreiras e obstáculos no acesso, afastando essas pessoas e violentando o seu direito à saúde”, aponta, em uma afirmação que ecoa as vivências da militante Anyky de Lima, 64.

Para ela, o Ambulatório Trans do Hospital Eduardo de Menezes, da rede Fhemig, significou uma conquista muito grande. “Não precisava, a saúde devia ser em qualquer lugar. Mas é lá que respeitam a nossa dignidade, respeitam as meninas, o nome social”, avalia Anyky, cujo nome orgulha-se de emprestar à instituição, que chega a seu terceiro ano em funcionamento neste 2020.

Fonte: www.otempo.com.br
Repórter: ALEX BESSAS