Por Ana Clara Jovino 06.08.2021
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A geração dos millenials e principalmente a geração Z estão tão imersos e habituados com os smartphones, o uso das redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas e o que tudo isso possibilita, que talvez nem percebem como essas ferramentas tecnológicas potencializam as expectativas de um futuro com uma qualidade de vida melhor, justamente pelo sentimento causado, de integração na sociedade. Além disso, estar conectado é um grande exercício mental, que desenvolve a coordenação motora e a cognição.
O ambiente online é um espaço de troca, que faz com que quem esteja presente aprenda e descubra frequentemente as próprias habilidades. Assim, as pessoas com mais de 60 anos estão cada vez mais interessadas no mundo virtual, principalmente desde quando começou a pandemia, já que foi necessário o isolamento social.
Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em parceria com a Offer Wise Pesquisas, mostra que houve um forte avanço do número de idosos com acesso á internet nos últimos anos. Em 2018, o percentual de pessoas com mais de 60 anos navegando na rede mundial de computadores cresceu 68%. Em 2021, esse percentual cresceu para 97%.
A pesquisa ainda mostra que o principal meio de acesso é o smartphone, citado por 84% dos idosos que utilizam a internet, um crescimento de 8 pontos percentuais desde 2018, enquanto 37% fazem o uso do notebook e 36% usam computador desktop. Ainda de acordo com a investigação, o principal motivo dos idosos estarem conectados é ter informações sobre economia, política, esportes e outros assuntos (64%), para manter o contato com outras pessoas (61%) e buscar informações sobre produtos e serviços (54%).
Incluir a pessoa idosa no universo digital é uma importante política pública. Pensando nisso, o Projeto Fortaleza Cidade Amiga do Idoso, um projeto do Núcleo de Produções Culturais e Esportivas (Nuproce) em co-gestão com a Prefeitura de Fortaleza, tem o eixo de Inclusão Digital. Com o objetivo de amenizar a distância entre as ferramentas tecnológicas e os idosos, são oferecidos formações de Informática e Mídias Sociais para os beneficiários do projeto. Com a pandemia, as aulas, que antes eram presenciais, passaram a ocorrer de forma online.
Um dos professores do eixo Inclusão Digital é David Hudson de Oliveira Lopes. O profissional é formado em gestão de tecnologia. Pela sua experiência em orientar os idosos a navegarem na internet, o professor explica que a principal dificuldade detectada é a falta de incentivo familiar à inclusão digital dos idosos, bem como a falta de interação entre o público mais jovem com as gerações mais velhas. “Devido preconceito estabelecido diante das dificuldades naturais de aprendizagem dos idosos”, justifica David.
Para falar sobre o tema, o portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso conversou com a doutora em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM São Paulo, Marília Duque. Sua tese é sobre Smartphones, Saúde e Envelhecimento. Além disso, ela é Research Assistant na University College London e pesquisadora no projeto global ASSA, ‘Anthropology of Smartphones and Smart Ageing”. É autora dos protocolos “Guia de Boas Práticas de WhatsApp para Saúde” e “WhatsApp Aplicado à Nutrição” que visam a adoção do WhatsApp para Saúde como meio de inclusão de idosos nos sistemas de saúde mediados pela Telemedicina. É membro do Grupo de Pesquisa em Éticas Comunicação e Consumo ESPM/CNpQ e co-editora do observatório de Ética “Ética de Bolso”.
De acordo com suas pesquisas, as pessoas com mais de 60 anos se beneficia principalmente do aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp. Confira a entrevista:
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – De forma resumida, o que são os protocolos “Guia de Boas Práticas de WhatsApp para Saúde” e “WhatsApp Aplicado à Nutrição”?
Marília Duque – Os protocolos são entregas aplicadas da pesquisa de campo que desenvolvi em São Paulo entre 2018 e 2019. Neste período, observei a dificuldade desses idosos em lidar com os aplicativos oficiais desenvolvidos para mediar seu acesso à saúde. No lugar desses aplicativos, identifiquei o amplo uso do WhatsApp para saúde. Primeiro pelo ecossistema de saúde, por hospitais, clínicas e médicos, mesmo antes da regulação de consultas a distância feito em caráter emergencial durante a pandemia. Segundo pelos próprios idosos para coordenar o cuidado com seus pais e para acessar orientações médicas. Isso porque os idosos com quem trabalhei costumam buscar na sua rede de contatos no WhatsApp amigos e amigos de amigos que trabalham na área médica para aconselhamento em suas demandas cotidianas. Informalmente, esses amigos dão orientações, esclarecem diagnósticos e também ajudam a ultrapassar barreiras burocráticas enfrentadas no acesso à saúde tanto na rede privada quanto particular. Trata-se, pois, de uma rede de solidariedade baseada na troca de favores e na reciprocidade. O WhatsApp é o aplicativo com que os idosos mais têm familiaridade e seu aprendizado é motivado pelo desejo de se conectar a familiares e amigos, já que a comunicação dos brasileiros passou a ser mediada pela plataforma. Por conta disso, tenho trabalhado com a proposta de que o WhatsApp é o aplicativo com maior potencial para impactar a saúde dos idosos, porque dispensa a adoção de uma nova tecnologia.
No Guia de Boas Práticas do WhatsApp, sistematizo o modo como o WhatsApp vinha sendo utilizado por hospitais, clínicas e médicos, além de apontar exemplos de boas práticas no cenário brasileiro. O resultado são protocolos para comunicação de hospitais e clínicas que podem ser implementados para comunicação com pacientes, mas também para triagem, atendimento a distância e educação.
O WhatsApp Aplicado à Nutrição responde a uma outra observação de campo. Os idosos com quem trabalhei em São Paulo têm grande preocupação com a alimentação, identificada por eles como um fator-chave para um envelhecimento saudável. Boa parte dos conteúdos que compartilham nos grupos de WhatsApp são sobre o tema. Entretanto, essa consciência não se reflete nos dados nutricionais desse grupo etário em São Paulo. Esses protocolos reproduzem no WhatsApp os jornais visuais já usados por outros aplicativos específicos de nutrição. Sua intenção é que os idosos possam registrar e visualizar o que comem, de forma que possam melhorar suas escolhas e hábitos alimentares. O projeto piloto foi conduzido no Setor de Estudos de Envelhecimento na Unifesp com resultados positivos. As imagens compartilhadas com o nutricionista encarregado do projeto foram reveladoras para os participantes. Além disso, em entrevista com eles, foi possível identificar outros pontos importantes, como a relação da qualidade na alimentação com o morar sozinho, um ponto que pretendo desenvolver ainda no futuro.
De maneira simplificada, o WhatsApp Aplicado à Nutrição é um passo-a-passo para nutricionistas que desejam trabalhar com jornais alimentares visuais com seus pacientes.
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – Como e porque você começou a desenvolver pesquisas que envolvem a inclusão digital de idosos?
Marília Duque – A pesquisa com idosos veio do convite para integrar o projeto global Smartphone SmartAgeing, conduzido pelo departamento de Antropologia da University College London. Somos onze pesquisadores investigando os impactos dos smartphones para a saúde e o envelhecimento no mundo. Eu sou a pesquisadora brasileira e conduzi a pesquisa em um bairro de classe média em São Paulo. Minha tese de doutorado, defendida na ESPM São Paulo com financiamento da CAPES, explorou o mesmo tema, mas a partir do campo da Comunicação e do Consumo. Durante a pesquisa de campo, trabalhei como voluntária em um curso de WhatsApp dirigido à Terceira Idade e como assistente em um curso de smartphones. Durante três semestres, pude observar como se dá esse aprendizado e como o WhatsApp é o primeiro aplicativo que os idosos querem aprender. É interessante notar que quase 100% dos idosos já chegavam ao curso com o WhatsApp instalado e geralmente o download era feito por parentes ou amigos. O WhatsApp em si já era responsável por uma verdadeira revolução para esses idosos. Além da sociabilidade, os idosos usavam os grupos para compartilhar informações úteis, de saúde, bem como as oportunidades de atividades destinadas a eles em São Paulo. De certa forma, informalmente, é possível propor que eles tornavam São Paulo uma cidade inteligente porque participativa e voltada para suas necessidades específicas. Mas é preciso passar da informalidade para a formalidade. Falar de inclusão digital hoje é falar de inclusão social. Se mais e mais serviços, benefícios e direitos passam a ser acessíveis por plataformas ou aplicativos, é fundamental capacitar as pessoas para usá-los. Caso contrário, o direto à cidadania fica comprometido. Um exemplo positivo em políticas públicas foi, por exemplo, a iniciativa WhatsApp Solidário, implementado em 7 dias, durante a pandemia, para acompanhar os idosos em isolamento com atividades físicas e lúdicas, além de prestar suporte à saúde mental. (veja mais aqui: https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/whatsapp-solidario-exemplo-exitoso-de-politicas-publicas-em-sp/)
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – Como você acha que a inclusão digital contribui para a melhora da saúde do idoso? Estar incluído digitalmente e utilizar as ferramentas de um smartphone é benéfico de que forma para o idoso?
Marília Duque – Entre os participantes da minha pesquisa, o maior impacto para a saúde é na sociabilidade e na rede de informação e suporte estruturada pelo WhatsApp. Nos grupos de WhatsApp, eles têm acesso a atividades que podem resultar em atividades físicas, aprendizado e em companhia. Compartilhar essas informações é trabalho feito por eles e também funciona como uma ocupação capaz de restaurar o senso de utilidade. Todos estão comprometidos em trazer informações úteis para seus pares.
Além disso, os amigos passam a ser o grande suporte na velhice, já que há a preocupação em não ser um peso para os filhos. E os smartphones possibilitam essa conexão. Entre os participantes, por exemplo, era comum que os idosos ocultassem os problemas de saúde dos filhos e recorressem a amigos para os acompanharem a exames e consultas.
O smartphone também ajuda na autonomia. Durante a pesquisa, observei por exemplo dinâmicas e rotinas mediadas pelo WhatsApp que permitiam que pais idosos continuassem morando sozinhos em suas casas com segurança. Além disso, ter um canal de comunicação com médicos também impacta na saúde diretamente porque traz tranquilidade para os idosos. Mas, mais uma vez, o ideal é que essa comunicação seja mediada pelo aplicativo que eles dominam. E isso não quer dizer que haverá abuso por parte deles. Ao contrário, os idosos com quem trabalhei preservam essas conexões apenas para emergências. Para o cotidiano, buscam assistência de amigos que trabalham na área da saúde e que podem fornecer, via WhatsApp, um conteúdo que é ao mesmo tempo profissional e informal.
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – Como pessoas de gerações mais novas podem auxiliar o idoso na hora de orientar sobre o uso de smartphones?
Marília Duque – O principal é ter empatia e entender as necessidade e capacidades do idoso. Mas isso nem sempre acontece na prática. Os alunos de WhatsApp, por exemplo, iniciaram o curso com baixa auto-estima, porque ouvem dos filhos que o smartphone é intuitivo e que eles deveriam saber o que fazer. É comum também frases do tipo “Só vou te explicar mais uma vez, vê se aprende, hein?”. A falta de paciência dos filhos é inclusive um dos motivos pelos quais eles buscam a ajuda profissional em cursos. Já os netos, conforme relatos desses idosos, “resolvem, mas não sabem explicar”. É preciso reconhecer que as interfaces têm letras pequenas, que os botões nem sempre são alvos fáceis para quem tem artrose ou tremor. Além disso, há também a questão da memória e da própria lógica dos aplicativos que desafia o pensamento linear com o qual os idosos estão acostumados. Então, posso responder à pergunta também sugerindo que as gerações novas de desenvolvedores considerem a perspectiva dos idosos no lançamento de novos aplicativos. É importante ter em mente também que ser idoso não é sinônimo de dificuldades com tecnologia. Na minha pesquisa, por exemplo, a familiaridade com a tecnologia se mostrou muito mais relacionada com o tempo de aposentadoria do que com a idade em si. A geração de idosos com quem trabalhei se aposentou muito cedo, muitos na época em que os e-mails estavam se disseminando no Brasil. Ou seja, esses idosos deixaram o ambiente de trabalho que é justamente aonde a tecnologia chega primeiro, de graça e de forma aplicada, o que facilita o aprendizado. De qualquer forma, são os amigos que “sabem mais” que ajudam no dia a dia, principalmente no download e setup de novos aplicativos. E mais uma vez, temos o exemplo de como os idosos estão auxiliando diretamente na inclusão de outros idosos. O caso do grupo Trabalho 60+ é exemplar. Os membros que tinham mais familiaridade com smartphones promoveram o aprendizado do Zoom, possibilitando que as atividades desenvolvidas presencialmente pelo grupo migrassem para o digital e tivessem continuidade durante a pandemia.
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – Estar incluso digitalmente afeta como a vida de um idoso? É comum a mudança de alguns hábitos?
Marília Duque – Eu já falei dos pontos positivos. Mas tem também os negativos. Há uma fase de adaptação caracterizada principalmente pela ansiedade. É preciso um certo tempo para entender que a conexão pode estar disponível 24h, mas os idosos não precisam estar. Além disso, uma das dificuldades é silenciar as notificações. Por isso há uma demanda cognitiva muito grande, que pode prejudicar até o sono, por exemplo. Além disso, e isso não é exclusivo dos idosos, há também a sensação de que estão perdendo algum acontecimento ou informação. Por isso, é comum também que os idosos fiquem preocupados em checar seus smartphones a toda hora, o que pode resultar em algum grau de adição.
Portal Fortaleza Cidade Amiga do Idoso – Adquirir e usar smartphones é algo muito propício na pandemia, por causa do isolamento social. Você sabe dizer se houve crescimento de usuários de smartphones desde o ano passado? O que mudou desde então no comportamento dos idosos em relação as ferramentas tecnológicas?
Marília Duque – Eu não tenho esses dados. Minha pesquisa é etnográfica e o campo é anterior à pandemia. Entretanto, os grupos de WhatsApp que observei durante minha pesquisa estão mais ativos do que nunca. Alguns idosos conseguiram migrar para o Zoom, mas muitos ainda estão restritos ao WhatsApp. Nesse sentido, ajudou muito a disponibilização de canais de WhatsApp para o comércio, principalmente farmácias e mercados.
Um ponto problemático com relação ao isolamento e ampliação do uso de smartphones é que, entre os participantes da minha pesquisa, o download de novos aplicativos era geralmente feito por amigos e familiares. Em isolamento, essa ajuda fica indisponível. Daí a importância de que as soluções pensadas para amparar os cidadãos durante a pandemia considerem as especificidades dos idosos e, sempre que possível, elejam os meios com os quais eles já têm familiaridade. Mais uma vez, reforço, inclusão digital é inclusão social. Esse foi um dos motivos pelos quais criei a campanha ‘Anjos no WhatsApp’ durante a pandemia. Além da escuta diária, uma das funções dos anjos era fazer a ponte entre os idosos e as informações oficiais, já que eles poderiam ter dificuldade em acessar o aplicativo Coronavirus SUS lançado na época, por exemplo.
Marília Duque participa do programa Fortaleza 6.0 deste sábado, dia 7 de agosto, a partir das 10h. Acompanhe no Youtube do Projeto Fortaleza Cidade Amiga do Idoso.